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  • Foto do escritorJose Luiz Balestrini

Como se livrar da angústia.

Atualizado: 6 de fev.

A angústia era tão grande que lhe doíam os pés. Incompreensível porque era impossível racionalizar, raciocinar ou racionar. Encontrar razão no irracional não rola. Seria melhor irracionalizar, irraciocinar ou irracionar.

Quando a dor vinha, já sabia que não encontraria alívio. No fundo a dor não vinha porque não também não ia. Algo que não tenha ido, não pode voltar. No fundo ela latejava, e assim... lhe doíam os pés.

Ouvia músicas, mas não eram suas.

Lia textos que não eram seus.

Assistia a filmes, vídeos, stories, documentários, séries... mas nada disso era seu. A não ser a angústia, essa sim era sua.

Talvez tenha falhado em perceber exatamente isso: que tudo era de ninguém, mesmo aquilo que algumas vezes parecia ser seu. Legítima mesmo era a angústia, mas essa ele não queria fosse sua.

Possuía, ou era possuído por milhões de seguidores. A possessão é um estado de graça, ela força a percepção de que existe uma dimensão divina.

Quando somos possuídos ou acreditamos possuir estamos conectados com algo maior do que o próprio humano. Por isso é tão difícil renunciar à possessão. Para o humano, para os demônios e até mesmo para os anjos, a possessão é uma espécie de inflação. Nesse estado achamos que somos mais do que somos e/ou somos mais do que achamos ser.

Apenas um desses milhões de seguidores o seguia de verdade, digo, na concretude, não somente através das imagens semiverdadeiras que publicava.

Era um, ou uma fã que não possuía mais nada a não ser seu aparelho celular. Só mais alguém que não possuía a si mesmo e por isso queria possuir a vida de outro. Nosso protagonista sabia da existência de tal ser porque o via se esgueirando atrás de si, nas ruas nos becos, dentro do carro, no apartamento, até no banho ou no momento da merda. Mesmo dormindo, sentia a presença invisível do seguidor – para ser justo sentia também a invisibilidade presencial dos milhões de seguidores que possuía ou que o possuíam.

Não era velho, tinha seus vinte e tantos anos e o sucesso de duas postagens era tão grande que isso lhe garantia um bom dinheiro. Porém, se lhe perguntassem, talvez numa sessão de terapia, onde teria a chance de ser honesto consigo, não saberia dizer se o dinheiro era mesmo bom. Afinal, o dinheiro pode ser bom ou mau, mas também pode ser bem ou mal. É preciso que isso seja dito por que, no caso desse pobre jovem rico, a angústia, citada no início da história, tem relação direta com a qualidade do dinheiro que vai a sua conta. Nesse cálculo também entra o preço que pagamos quando não damos atenção às necessidades da nossa alma. Vejam então que, como dizem por aí, preço não é valor.

O bom dinheiro que ganhava não era bem dinheiro. Ao contrário do que muitos pensam, um dinheiro não igual a outro. Mesmo que atualmente, o dinheiro não passe de números numa tela, existem bons número e números maus. Eles ficam ali misturados e a soma parece uma unidade que aumenta e diminui em sua totalidade, mas na realidade não é bem assim. Quando acontece de os maus números serem muitos superiores aos números bons, então o bom dinheiro é, na verdade, mal.

Era esse o caso com o nosso indivíduo que olhava agora para uma parede vazia do seu rico apartamento e via no reflexo da brancura, que deveria ser total, apenas o nada.

O silêncio que o branco da parede refletia era a própria loucura. Com tanto dinheiro, preço e valor, por dentro era pura angústia. E os pés latejavam, num pedido explosivo de socorro.

O pobre de contato com a alma não percebia que o que vivia era o contrário do silêncio, porque era somente nos momentos de silêncio que a alma angustiada tinha espaço-tempo para fazer barulho. E ela se aproveitava disso não com más intenções, causava todo aquele ruído porque precisava de atenção e cuidado. Somente quando o ruído externo diminui é possível ouvir o ruído interno. Nos dias de hoje, o barulho de fora, infelizmente, parece ser muito maior do que o barulho de dentro.

Olhava agora para os pés que, aparentemente, não tinham nada de errado. Eram bem formados, bem cuidados, não estavam inchados, vermelhos, fungados ou machucados. Não havia feridas, cortes ou bichos. E, ainda assim, doíam como se fossem pedras gigantes nos rins.

Aquele seguidor, o único entre seus milhões que o via nessas situações, não conseguiu se conter. Para ser justo, nem tentou não dizer o que lhe veio à boca com retrogosto de vingança. Se aproximou por trás do angustiado e sussurrou quase gritando em sua orelha: “corte-os.”

Talvez a construção da pequena frase tenha sido mais elaborada do que o necessário. A sombra poderia ter dito: corta fora, arranca essa porra... mas como era mais antiga do que parecia, usou a forma habitual de uma época passada: corte-os. Depois de dita a frase, afastou-se sorrindo para observar o resultado do conselho mau, bem dado.

Incapacitado de pensar simbolicamente pela vida exageradamente extrovertida que levava, o, até então, dono dos pés, decidiu que a ideia era excelente. Foi até a cozinha luxuosa e buscou nos armários planejados o melhor utensílio para o tipo de serviço proposto. Uma faca elétrica de última geração que havia comprado numa de suas muitas viagens para o exterior. Ia sempre, praticamente o tempo todo para o exterior e nesse movimento, quase nunca visitava os interiores. Alguns modelos desse tipo de faca poderiam ser encontrados em seu país, mas era diferente poder contar para as visitas e para os seguidores que havia adquirido tal item durante uma viagem. A faca não sabia, mas para ele e para os ouvidos atentos à história, ela ganhava valor. O preço parecia não mudar muito, mesmo com todos os detalhes e exageros maçantes, massivos, mascados e massificados.

Não voltou para a sala de estar luxuoso e luxurioso. Resolveu que seria melhor fazer o serviço ali mesmo, afinal era o lugar correto para se cortar a carne.

Ligou a faca inocente na tomada. O fio era comprido na justa medida para que alcançasse com a lâmina os tornozelos.

Pressionou o botão que fazia a coisa funcionar e iniciou seu trabalho com a esperança de que finalmente se livraria daquela dor.

Cortou primeiro o pé esquerdo. Não saberia explicar muito bem os motivos de tal escolha, mas quando acabou essa parte do serviço, pensou que tinha sido mais fácil do que imaginava que seria. A dor de cortar fora o próprio pé era menor do que a dor que a angústia de possuir tal pé causava. Fazia sentido, portanto, que não tinha sido difícil manter o botão da faca elétrica pressionado durante o processo. Esses aparelhos são relativamente espertos. Como sistema de segurança, para tal faca funcionar, o usuário precisa manter o botão pressionado durante todo o processo de corte, seja da carne comprada ou daquele que sempre carregou consigo. Isso é para o caso de quando o usuário não pretende cortar a si mesmo com o aparato, mas acaba fazendo algo assim por engano. Com o menor sinal de dor, seria automático soltar a coisa fazendo com que ela se desligasse rapidamente. Na teoria isso impediria que algum coitado cortasse fora um dedo próprio.

Para que não tivesse que cortar demais através dos ossos, o que seria bem difícil, buscou passar a lâmina contornando as articulação e ligamentos que conectavam os pés ao resto do corpo. Agora que o pé esquerdo já não lhe pertencia, metade da dor do cortar fora os próprios pés era sua, mas, em compensação, metade da dor causada pela angústia parecia não estar mais lá.

Cortou o direito. Foi mais fácil, afinal já tinha adquirido certa técnica no trabalho com o esquerdo.

No final, aliviados, os pés é que se deram bem. Agora já não sofriam mais com a angústia do antigo dono.




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