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  • Foto do escritorJose Luiz Balestrini

CAP 1. - POR ESSE PÃO PRA COMER

Maria José ou José Maria nasceu num dia de um mês de algum ano e não dá para dizer muito mais do que isso sobre o acontecido. Podemos falar, talvez, um pouco de como as coisas se deram até o dia de tal sofrimento. Passou cerca de nove meses dentro do estômago da mãe e saiu de lá quando chegou o momento.

Cagado, cuspida e escarrada a cara do pai, da mãe, da avó ou do primo da mãe que morava no barraco vizinho. Filho ou filha de um casal pobre, mas honrado, pelo menos do ponto de vista da honestidade econômica, pois não roubavam, ganhavam e faziam seu sustento de maneira correta, mas nem tanto do ponto de vista conjugal, porque não era só ela que se deitava às vezes com o parente que vivia ao lado, ele também fazia sexo com parceiras eventuais, o rebento veio ao mundo da matéria e trouxe consigo para cá mais uma alma sedenta e um corpo faminto, ou vice e versa.

Menina ou menino novo ou nova numa família de cinco ou seis outros integrantes. Com ele ou ela eram no total seis ou sete, sem contar os cães, gatos, ratos, baratas, percevejos e lombrigas que habitavam o mesmo lugar ou mesmo os corpos da família da pequena pobre coitada. Minto quando digo que não é possível escrever mais sobre como se deu o parimento, na verdade, foi uma situação no mínimo inusitada. Perceba o leitor que mais acima digo que foram cerca de noves meses de gestação e afirmo isso porque foi assim mesmo que aconteceu. Por falta de uma via azul ou rosa de uma certidão determinada com um número de série qualquer, carimbada por algum maluco ou mesmo pessoa sã, a criança não pôde nascer quando era seu tempo natural, teve que esperar, assim como os pais, a burocracia do sistema de saúde do país receber por escrito a ordem para que pudesse vir ao mundo. Passou, portanto, do tempo que deveria ter nascido e veio ao mundo atrasada, por assim dizer, pois poderia ter chegado antes se o papel que garantia sua saída pela vagina ou diretamente da barriga da mãe não tivesse se perdido num boteco quando o pai bebia mais do que devia e podia. Mas voltaremos a falar sobre essa certidão, que agora não é hora, de acordo com o andamento da música.

Pouco depois de chegar ao mundo ela ou ele sentiu logo a fome que é característica de todo ser humano, seja ele ou ela considerada dessa maneira ou não. A fome humana não é exatamente a mesma que sentem os outros animais, para nós, ela é sempre mais e maior, e desde a nossa condição de feto ou de feta que é assim. Também há diferenças socioeconômicas entre as fomes. Alguns tem o direito de se perguntar do que têm fome, outros nunca terão a chance de tal disparate filosófico musical porque a fome é de comida mesmo. Não quero dizer, com essa afirmação, que uma fome é mais importante do que a outra, mas, ao mesmo tempo, me parece que é assim: se uma não está satisfeita, a outra não tem nem o direito de aparecer. Maria ou José agarrou a teta da mãe com vontade quando chegou a hora, mas, de lá, o leite minguava porque a fome da mãe também era muita e a produção do líquido branco quase translúcido depende, entre outros fatores, da alimentação da dona da mama. Mas de algum jeito a vida encontra caminhos para continuar, como sabemos daquele Severino que nasceu no final da história que contava de tantos Severinos que morreram. Às vezes me pergunto o que aconteceu com tal Severino, imagino que deve ter morrido também enquanto outros Severinos nasciam para perpetuar a espécie.

Saltamos cronologicamente a história para dizer que a fome acompanhou o rebento ou rebenta até que fosse possível, do ponto de vista atlético, ou seja, com a devida coordenação motora desenvolvida de maneira específica para tal ato, roubar um pão.

Acreditou por um momento que o vazio anímico da barriga poderia ser preenchido com um pedaço de pão. Obviamente isso não era verdade, afinal um pedaço de pão nunca é suficiente para preencher um espaço tão grande, quase uma úlcera, que talvez seja o contrário de um câncer. Na úlcera o buraco aumenta, enquanto no câncer ele é preenchido indiscriminadamente, assim, talvez, o câncer tente matar a fome, enquanto a úlcera tente mantê-la viva. Do dinheiro conseguido através do suor de outrem, veio o pão afanado e, por esse pão para comer, que algum pai havia pagado, agradeceu e desejou que Deus desse em dobro também ao dono da padaria.

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